Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil

Escrito por Nieuhof, Joan e publicado por Livraria Martins

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duelo da artilharia, faziam coro os gritos e lamentações dos feridos. Entretanto, já os turcos não mais tentavam nos abordar, fosse porque nos supusessem mais bem equipados do que realmente estávamos ou por temerem que procurássemos incendiar-lhes as naus, o que realmente havíamos tentado, atirando-lhes um morrão aceso. Responderam-nos, em holandês que não nos deixariam naquelas condições. Entretanto, não demorou muito antes que os víssemos afastar com seus navios atingidos por muito de nossos tiros. E assim, com vento forte, pudemos dar todo pano e livrar-nos de tão indesejáveis companheiros, tomando rumo completamente diferente. Com a vantagem que nos deram as trevas da noite, já na manhã seguinte estávamos bem longe deles.

Demos graças a Deus por nos haver salvo do perigo da escravidão 1, auxiliando-nos na luta contra um inimigo muito mais forte. De fato, o maior dos navios contrários estava armado com 24 canhões e o outro com 2, enquanto que nós apenas dispúnhamos de 18, sem levar em conta o fato de terem eles uma guarnição muito maior que a nossa. Depois de vistoriar nosso navio e de verificar que estava em boas condições, empenhamo-nos em reparar os danos sofridos em combate. Ocupávamo-nos desse mister quando, no dia 7, forte tempestade nos surpreendeu, obrigando-nos a baixar todas as velas. Causou-nos isso grande confusão, mas, por fortuna, a tormenta logo passou. Deu-se, então, ordem para distribuir, daí por diante, uma ração de três libras e meia de bolacha, por semana, a cada marinheiro, pois o pão que trazíamos a bordo estava completamente embolorado. No dia 10 achávamo-nos a 39 graus e 30 minutos, ou seja cerca de 20 milhas ao largo das Ilhas Canárias. Dessa posição avistamos o pico de Tenerife de três milhas e meia de altura 2, e que passa por ser a mais alta montanha do mundo. É visível a 60 milhas de terra. Prosseguimos viagem até o dia 14, sem nenhum incidente digno de nota, quando então cruzamos o Trópico de Câncer.


  1. Nota 2: O Alcorão proíbe reduzir à escravidão os muçulmanos, mas admite a escravidão dos idólatras. Durante toda a história turca existiram escravos brancos e negros entre os turcos, sendo a guerra a fonte de escravidão branca, principalmente na época das Cruzadas. É sabido que os muçulmanos exerceram a pirataria, roubando habitantes das costas do Mediterrâneo e vendendo-os como escravos, tráfico este que durou até a metade do século XIX. A ordem da Mercê foi criada com o fito especial de libertar os cativos. O exército turco - os célebres janísaros - eram recrutados entre cristãos. Os corsários turcos exerciam suas atividades especialmente no Mediterrâneo Ocidental, que se tornou um mar pouco seguro para os cristãos. Herbert Bloom conta-nos, por exemplo, que um certo judeu Efraim Abensachis libertou, por essa época, vários cativos de origem holandesa, que foram trazidos à Holanda, onde Efraim recebeu dinheiro e uma medalha de ouro, mandada cunhar pelo corpo legislativo holandês. (XI, p. 84).

  2. Nota 3: Na edição inglesa está: "duas léguas e meia" (p. 3, 1a coluna 1º §); cf. Edição holandesa, (p.4, 1ª coluna 4° §).