Historia Natural Médica da Índia Ocidental

Escrito por Piso, Guilherme e publicado por Ed. Itatiaia. Ed. Universidade de São Paulo

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O modo insensato de curar no começo das febres sínocas e ardentes, nas Índias é muito prejudicial, como em qualquer parte da terra, segundo o Aforismo XXIX, do liv. II: "No início das doenças, se algo deve ser movido, mova-se; estando elas adiantadas, convém observar repouso." Nem se deve atender ao alvitre de Avicena,1 que aconselha só sangrar depois da digestão, uma vez passado o princípio e o clímax da doença. Se no início não se derem logo grandes remédios, as febres agudas se agravam, não raro acarretando a morte. E até, após o segundo dia, nada se deve mover que antes o não tenha sido. Estando inchada a matéria, nas febres agudíssimas. deve-se descansar depois do primeiro dia, por causa das forças perdidas. Esta verdade, aprendida pelos gregos por meio da experiência, cada dia mais e mais se manifesta nas Índias. As sangrias convém sejam feitas escrupulosa e cautamente nos nossos e na maioria dos estrangeiros recém chegados, uma vez que os corpos dos lusitanos, e principalmente dos índios, são fortes e reforçados e cheios de amplos vasos sanguíneos e de escassa gordura, portanto mais aptos a suportarem os esfalfamentos e perdas de sangue. Desde a tenra infância até à velhice (ambas costumam ser válidas entre os indígenas), os amigos sangram-se mutuamente, a qualquer hora do dia ou da noite, rápida, segura e prazerosamente. Imitando nisto a Razi,2 naquilo a Avicena, apesar de tantas proibições de Galeno, e outros antigos. Segundo aquela sentença de Celso, no cap. X do liv. II, deve-se levar em conta "não a idade, nem a gravidez, mas o estado das forças". Com esta precaução, que, quanto eles superam os europeus e boreais na freqüência de sangrar, tanto lhes ficam aquém na quantidade de sangue extraído de uma só vez: nesta, são estes bastante liberais, aqueles, ao invés, parcos. Não me lembro de que, seguindo o exemplo de Hipócrates, extraíssem sangue até o desmaio; porque raramente concorrem os requisitos para tal num mesmo sujeito. Num corpo jovem, vigoroso e pletórico, a quantidade de sangue extraído mal supera a sete onças,3 mas costumam repetir a sangria, com êxito feliz, quatro e mesmo cinco vezes ao dia. Nisto, nem acompanham inteiramente os egípcios, que gostam de perder sangue só depois de alimentados, nem os nos-


  1. Nota 59: Avicena, ou melhor, Abu Ali Huçein ben Abdallah ben Sina (980-1037). Célebre filósofo e médico árabe. A sua principal obra médica é o Cânon da medicina (al-qanum fil tebb) .

  2. Nota 60: Razis ou Razi, isto é, Abu Bekr ben Zakaria er-Rasi (C.850-C.923), médico natural do Iraque. Seus escritos serviram de base ao ensino nas escolas médicas européias até o século XVII. As principais obras são: Harvi seu Cotinens, Ad Almanzorem lib. X. Be pes, tilentia.

  3. Nota 61: Medida de peso. Nas boticas de Portugal a ouça valia 8 dracmas, a dracma 3 escrópulos, o escrópulo 24 grãos.