e escaleres vieram-nos ao encontro e conduziram-nos para o Recife, onde entramos pelas horas da noite.Deixo à imaginação do leitor o que foram a alegria e as aclamações deste povo prostrado pela fome quando viu os seus restauradores. Havia três meses inteiros que não se lhes distribuía senão uma libra de farinha da Europa, ervilhas ou favas, por semana, sendo obrigados, quanto ao mais, a contentar-se com as ervas, raízes e folhas que cresciam sobre os baluartes e nos cemitérios, as quais, aqueles que chegavam a obter lenha, faziam cozer quatro ou cinco vezes na água salobra para tirar-lhes o amargor e comiam-nas, temperadas com um pouco de sal, com os peixes que conseguiam pescar. Todos os armazéns estavam vazios, não restando, para mais de duas mil bocas, senão um tonel de farinha, três de ervi-lhas e uns trezentos de peixe-pau, pescado muito seco e sem gosto. Do começo da revolta até a nossa chegada, cerca de mil e quinhentas pessoas morreram de miséria ou de fome, outras tantas foram mortas e aprisionadas e algumas se entregaram ao inimigo.Toda a soldadesca e a burguesia pegaram em armas e só se escutava o troar dos ca-nhões dos navios, do porto e das fortalezas, que atiravam tão desordenadamente e em tal confusão, que um navio e uma casa foram atingidos e destruídos pelo fogo destes canhões. Se as coisas mais feias podem surpreender, tivemos bem razão de nos espantar com o as-pecto dos escravos e selvagens, inteiramente nus: seus rostos eram pretos como ébano, tis-nados, azeitonados e de cor esfumaçada, seus olhos, que remexiam nas órbitas, lançavam olhares estranhos, e seus corpos magros e secos como esqueletos teriam inspirado terror aos mais corajosos. Estavam nas janelas das casas lateralmente ao longo das ruas, seguran-do com as mãos archotes e lanternas, de sorte que a noite estava melhor alumiada do que um dia claro. O regozijo público foi acompanhado de mil gritos de alegria; alguns para demonstrar sua satisfação sapateavam com toda a força outros davam passos estudados e extraordinários.
Anistia aos prisioneiros, em sinal de regozijoNo dia seguinte, a fim de que esse júbilo não fosse perturbado por um espetáculo odioso, o Senhor Van Goch perdoou dois criminosos condenados por furto noturno, que iam ser executados. Passaram-se seis semanas antes que os outros Senhores, o General, seus Coronéis, o Almirante e todos os outros navios da esquadra chegassem ao Recife. Tinham sido forçados, pelas tempestades, e, para fazer provisão de água doce, a ir ancorar nas férteis ilhas de São Vicente, Maranhão, Angola, Guiné, etc., e encontraram-se, finalmente, em número de qua-renta e cinco. Os outros cinco afundaram, os quais, com os dois que pereceram nas dunas, somaram sete navios que a Companhia das Índias perdeu nesta viagem e quatrocentos a quinhentos homens da frota, que morreram na travessia devido a doenças, à miséria e ou-tras razões.Se os habitantes do Recife tinham razão para alegrar-se com este socorro, aqueles que o compunham não o tiveram menos por verem-se chegados a bom porto, ao abrigo das penas e fadigas que o mar carreia; mas poucos dias após ficaram admirados de não serem mais tratados à moda européia. Um mês depois da chegada de toda a frota, não se podia encontrar um bocado de pão por uma pistola; e isso porque os Comissários distri-buíam a cada um por semana, mediante vales assinados pelos Senhores, duas libras de pão negro, uma libra e meia de carne, uma libra de toucinho, ervilhas e favas, azeite, aguarden-te e vinagre e, algumas vezes meio martelo de vinho da Espanha, que corresponde à oitava parte de uma pinta sendo proibido dar mais do que estava prescrito nos vales sob pena de morte; todavia, quem tinha bastante dinheiro encontrava meios de comprar secretamente aos Comissários, tanto assim que mesmo durante a mais extrema escassez, um judeu, por cem escudos, conseguiu deles um alqueire de farinha, medida que pode pesar quinze a dezesseis libras.