às costas de Marrocos, na Barbária, África. No momento mesmo que acreditavam estar muito adiantados em direção ao Ocidente, tiveram de mudar sua rota em direção às Ilhas Salgadas; mas, em lugar de irmos nos refrescar na Ilha de São Vicente, uma delas, como é o costume dos viajantes, o Senhor Van Goch não quis que aí escalássemos, a fim de chegarmos mais depressa ao Recife, viagem demasiado fatigante.Aos dezesseis graus e meio, próximos da Linha do Equador, vimos também as ilhas do Sal e da Boa Vista* vizinhas da de São Vicente, habitadas pelos banidos da Espanha, que para aí são deportados e que se resgatam por um determinado número de peles de bodes, que devem entregar anualmente, dos quais são feitos os marroquins da Espanha. Tivemos o prazer de ver sobre esta vasta e espaçosa extensão das águas um número incalculável de diversos peixes, grande quantidade dos quais têm asas de cartilagens, eram do tamanho dos grandes arenques e de excelente gosto; volteando no ar, vinham cair comumente em nossas velas, como uma poupa nas redes, toninhas, marsuínos, lixas e bonitos, que pescamos e apanhamos com abundancia à linha ou à flecha.O grande calor do sol, as carnes salgadas e a porção de água doce reduzida a um copo por dia, toda ela fétida e cheia de vermes, os biscoitos mofados e estragados pela umidade do mar causaram grandes sofrimentos e doenças. Ainda mais, uma calmaria de seis dias que se verificou sobre a Linha quase nos fez abafar de calor, sem que fosse pos-sível, durante esse período de tempo, avançar de um meio quarto de légua, prodígio ma-ravilhoso desta formidável planície úmida, que permanecia menos agitada que uma porção de água estagnada e que, quando movida pelos ventos faz tremer o mundo e nascer o terror e o medo nas almas mais firmes e resolutas, zombando na sua fúria dos navios mais poderosos, malgrado a habilidade de seus timoneiros, como se fossem pequenas conchas, elevando-os ao cume de suas altas montanhas de água e abaixando-os num momento nos seus profundos vales, como se os fizessem descer num golfo inevitável, enquanto que no mesmo instante os faz subir novamente acima de suas corcovas e de novo retombar nos seus abismos, e assim consecutivamente, para depois, no dia seguinte, mostrar-se de novo brando e sem movimento.
O escorbuto, perigosa doença do marOs raios ardentes do sol, que eram para a nossa vista como faíscas de fogo, engendraram, com o que foi dito, várias enfermidades. O escorbuto, doença do mar, que paralisa os movimentos dos nervos, afeta os músculos, curva os membros, ataca as gengivas, que corrompe e enegrece inteiramente, sendo preciso cortá-las com tesouras, atacou grande parte dos soldados e marinheiros; não houve um sequer que não caísse doente com uma febre contínua e uma dor de cabeça perigosa durante nove dias, passados os quais nada mais havia a temer; causou ela a morte de um grande número, sobretudo daqueles que, não tendo muito cuidado pela sua conservação, se expunham de estômago descoberto à deliciosa frescura da noite, que lhes era quase sempre mortal. O nosso médico, os cirurgiões, o primeiro piloto, o comissário do navio, o mestre e uns cinqüenta homens desta embarcação morreram; foram envolvidos numa coberta, como mortalha, e jogados ao mar três ou quatro horas depois de seu passamento, com duas balas de canhão aos pés, um tição ardente e um disparo de canhão, como última homenagem. Todos aqueles que ficamos doentes por último, entre os quais estávamos eu e o Senhor Van Goch, não pudemos ser socorridos com medicamentos, porque todas as drogas tinham sido consumidas; o que ainda restava era azeite, que servia para fazer remédios, caldos e cristéis.
Perigo da calamariaA maior distração que tínhamos e nos ajudava a suportar esta situação de terrível *No texto, Bela Visera. (L. B. R. )