História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses

Escrito por Moreau, Pierre; Baro, Rouloux e publicado por Ed. Itatiaia. Ed. da Universidade de São Paulo

Página 59


às costas de Marrocos, na Barbária, África. No momento mesmo que acreditavam estar muito adiantados em direção ao Ocidente, tiveram de mudar sua rota em direção às Ilhas Salgadas; mas, em lugar de irmos nos refrescar na Ilha de São Vicente, uma delas, como é o costume dos viajantes, o Senhor Van Goch não quis que aí escalássemos, a fim de chegarmos mais depressa ao Recife, viagem demasiado fatigante.Aos dezesseis graus e meio, próximos da Linha do Equador, vimos também as ilhas do Sal e da Boa Vista* vizinhas da de São Vicente, habitadas pelos banidos da Espanha, que para aí são deportados e que se resgatam por um determinado número de peles de bodes, que devem entregar anualmente, dos quais são feitos os marroquins da Espanha. Tivemos o prazer de ver sobre esta vasta e espaçosa extensão das águas um número incalculável de diversos peixes, grande quantidade dos quais têm asas de cartilagens, eram do tamanho dos grandes arenques e de excelente gosto; volteando no ar, vinham cair comumente em nossas velas, como uma poupa nas redes, toninhas, marsuínos, lixas e bonitos, que pescamos e apanhamos com abundancia à linha ou à flecha.O grande calor do sol, as carnes salgadas e a porção de água doce reduzida a um copo por dia, toda ela fétida e cheia de vermes, os biscoitos mofados e estragados pela umidade do mar causaram grandes sofrimentos e doenças. Ainda mais, uma calmaria de seis dias que se verificou sobre a Linha quase nos fez abafar de calor, sem que fosse pos-sível, durante esse período de tempo, avançar de um meio quarto de légua, prodígio ma-ravilhoso desta formidável planície úmida, que permanecia menos agitada que uma porção de água estagnada e que, quando movida pelos ventos faz tremer o mundo e nascer o terror e o medo nas almas mais firmes e resolutas, zombando na sua fúria dos navios mais poderosos, malgrado a habilidade de seus timoneiros, como se fossem pequenas conchas, elevando-os ao cume de suas altas montanhas de água e abaixando-os num momento nos seus profundos vales, como se os fizessem descer num golfo inevitável, enquanto que no mesmo instante os faz subir novamente acima de suas corcovas e de novo retombar nos seus abismos, e assim consecutivamente, para depois, no dia seguinte, mostrar-se de novo brando e sem movimento.

O escorbuto, perigosa doença do marOs raios ardentes do sol, que eram para a nossa vista como faíscas de fogo, engendraram, com o que foi dito, várias enfermidades. O escorbuto, doença do mar, que paralisa os movimentos dos nervos, afeta os músculos, curva os membros, ataca as gengivas, que corrompe e enegrece inteiramente, sendo preciso cortá-las com tesouras, atacou grande parte dos soldados e marinheiros; não houve um sequer que não caísse doente com uma febre contínua e uma dor de cabeça perigosa durante nove dias, passados os quais nada mais havia a temer; causou ela a morte de um grande número, sobretudo daqueles que, não tendo muito cuidado pela sua conservação, se expunham de estômago descoberto à deliciosa frescura da noite, que lhes era quase sempre mortal. O nosso médico, os cirurgiões, o primeiro piloto, o comissário do navio, o mestre e uns cinqüenta homens desta embarcação morreram; foram envolvidos numa coberta, como mortalha, e jogados ao mar três ou quatro horas depois de seu passamento, com duas balas de canhão aos pés, um tição ardente e um disparo de canhão, como última homenagem. Todos aqueles que ficamos doentes por último, entre os quais estávamos eu e o Senhor Van Goch, não pudemos ser socorridos com medicamentos, porque todas as drogas tinham sido consumidas; o que ainda restava era azeite, que servia para fazer remédios, caldos e cristéis.

Perigo da calamariaA maior distração que tínhamos e nos ajudava a suportar esta situação de terrível *No texto, Bela Visera. (L. B. R. )