História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses

Escrito por Moreau, Pierre; Baro, Rouloux e publicado por Ed. Itatiaia. Ed. da Universidade de São Paulo

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queijo, aguardente nem fumo e, sob este pretexto, subtraíram ao copeiro-mor do navio as chaves da despensa e beberam e comeram durante dois dias, ao mesmo tempo que zombavam de seus oficiais e ameaçavam jogar ao mar o senhor Van Goch e todos os da cabine ou câmara do capitão. Durante este motim pusemo-nos todos em guarda e foram barradas as portas da casa do leme, assim como as do tenente e dos pilotos, que estão em cima; dispuseram-se os petardos e peças de artilharia mirando para o convés, na hipótese de um ataque, ao lado de uma boa provisão de todas as espécies de armas. Nesse intervalo, conseguimos acercar-nos dos navios da frota e encher a nossa cabine de oficiais, que penetraram pelas janelas do quarto do artilheiro; isso diminuiu o ímpeto dos amotinados, que não queríamos perder, porque tínhamos necessidade deles. Percebendo não serem os mais fortes, pediram perdão de joelhos aos senhores Van Goch e Beaumont, os quais argüíram que não se devia pedir nada de armas em punho e com ameaças, e sim mediante requisição verbal ou por escrito; seu procedimento merecia a morte, mas eles lhes perdoavam sob a condição de não recaírem em semelhante falta e se conservarem fiéis. A seguir para acalmá-los mandaram distribuir a cada um uma libra de fumo, aguardente e um queijo da Holanda.Embora os autores desta sedição tivessem sido perdoados por conveniência, foram marcados, como se costuma dizer, com lápis vermelho, e no Brasil, à menor falta cometida não se lhes regateou a forca. Para evitar que novamente se amotinassem, foram divididos em grupos de sete e embarcados em outros navios; dois mestres que tentaram recusar-se a receber a sua parte sofreram a destituição de seus cargos, tiveram seus soldos confiscados e foram recambiados para a Holanda.À saída do grande canal entre a França e a Inglaterra, entrando no oceano, entre o reino da Galícia e a Irlanda, o Senhor Van Goch mandou reunir no seu navio todos os oficiais da marinha e da milícia, a fim de dar-lhes a ordem que deveriam obedecer durante a viagem, para se reconhecerem de noite e se socorrerem uns aos outros em caso de combate, de tempestade ou de outro qualquer acidente. O Senhor de Beaumont, que era o único dos Senhores que estava na nossa frota, pois os outros se tinham separado desde as dunas da Inglaterra e haviam tomado outra rota, não a quis receber; disse que a ele é que cabia dá-la e ordenar o hasteamento da bandeira, porque ele representava uma das mais famosas Câmaras da Companhia e da Província da Holanda, a qual, sem contradita, passava como primeira em todo lugar; que, particularmente, bem gostaria de depender do referido senhor Van Goch e de deferir-lhe tal incumbência, mas, na qualidade de homem público, esta honra lhe pertencia; os que o tinham eleito jamais aprovariam que perdesse voluntariamente as suas prerrogativas. O Senhor Van Goch respondeu-lhe que um e outro não representavam, neste momento, as províncias da Holanda e da Zelândia, que recebiam, ambas, a lei dos Estados Gerais, e não uma da outra, mas somente as Câmaras que os ha-viam nomeado e confirmado; Midelburgo vinha depois de Amsterdão, mas não de Dor-drecht; a recusa de obedecer-lhe e querer ir em primeiro lugar, levando a bandeira para o seu navio, equivalia a ignorar a posição que ocupava a Câmara de Midelburgo nas assem-bléias da Companhia das Índias e perante os Dezenove. Os oficiais formaram então o Conselho: os da Zelândia, cujo número se verificou ser o maior, votaram a favor do Senhor Van Goch, ficando o Senhor de Beaumont como Vice-Almirante; os outros da Holanda, ao contrário, favoreceram o partido do referido Senhor de Beaumont e queriam que ele fosse o Almirante. Não tendo podido chegar a um acordo, o Senhor de Beaumont, que via o Senhor Van Goch conservar-se na vanguarda, acompanhado dos navios da Holanda que, misturados com os outros, mantinham a sua rota, a fim de que aqueles não se glorificassem por isso, chamou a si todos os holandeses, quis que tomassem um outro rumo e num instante, disparando um tiro de canhão, disse-nos adeus e se separou de nós;