História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses

Escrito por Moreau, Pierre; Baro, Rouloux e publicado por Ed. Itatiaia. Ed. da Universidade de São Paulo

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zem com a água que jogam sobre o bagaço das canas-de-açúcar quebradas, quando saíaam da prensa) por raízes e farinha de mandioca, que lhes serve de pão e lhes era fornecida pelos escravos de Labrador, que se juntavam para fazê-lo e viviam deste modo; quando ficavam doentes, recebiam menos cuidados que os animais. Se alguém matava escravo que não era seu, quitava-se mediante o pagamento ao senhor, do preço em que ele era calculado; e contra tal ato só havia ação civil. Quando morriam os escravos, a única cerimônia consistia em amarrar-lhes o corpo a um varal em três ou quatro lugares; dois de seus camaradas carregavam o cadáver sobre as espáduas e iam jogá-lo no mar ou em algum rio. Era-lhe impossível libertar-se de tão detestável servidão, porque, se pensassem escapar e fossem reconhecidos pelas marcas de seus senhores, impressa em vários lugares de seu corpo com um ferro em brasa, em vez de encontrar refúgio eram reconduzidos aos donos e tratados como foi dito. Por outro lado, quando conseguiam sublevar-se não havia crueldade comparável à sua, e é impossível des-crever exatamente a maneira por que, vagarosamente, tiravam a vida dos que os haviam assim atormentado, como se viu acontecer em várias ocasiões.É verdade que os holandeses não exerciam esta espécie de barbaria, mas a sua avareza contribuía indiretamente para ela: a grande carestia de tudo, decorrente dos empréstimos que faziam, obrigava os negociantes e particulares, que queriam lucrar muito, a elevar excessivamente o preço em relação aos portugueses que, necessariamente, passavam por suas mãos. A estes, por sua vez, teria sido impossível subsistir ou conservar-se na sua condição comum, sustentando suas famílias, dando presentes e realizando os grandes pagamentos a que estavam obrigados, sem redobrar seu rigor no trato dos escravos. Viam-se também forçados a aumentar-lhes o número, o que não conseguiam sem endividar-se, visando a obter do seu trabalho o suficiente para se quitarem. Durante algum tempo, para manterem boa reputação, forneceram à Companhia em Recife e a seus credores uma quantidade tão grande de açúcar que os armazéns mal esvaziavam eram logo novamente cheios. Os navios carregados partiam para a Holanda, e daí vinham outros cheios de mercadorias, que eram debitadas confusamente, sempre a crédito. Verificou-se, então, que só os juros absorviam todo o rendimento proveniente do trabalho dos portugueses e de seus escravos, sobretudo considerando-se que o açúcar preto caíra para um preço tão vil que a libra era vendida a um soldo e a do branco a três. Se fosse preciso pagar diárias aos escravos e alimentá-los, como fazem os mercenários neste país, o açúcar sairia a um preço muito mais alto.Era isso o que o Rei D. João mais desejava: ver os portugueses da conquista bem endividados em relação aos holandeses. Mandara até aconselhá-los que não tivessem receio de contrair dívidas e tomar sempre a crédito tudo que lhes oferecessem, a fim de que os devedores ficassem cada vez mais comprometidos com os seus credores, pois então, para conseguir o seu intento, ele lhes proporia não só a isenção de todo pagamento como lhes entregaria os bens daqueles que tinham o direito de cobrar-lhes.

João Fernandes VieiraPor enquanto só alguns confidentes sabiam do segredo e informavam secretamente tudo que se passava entre os holandeses, especialmente o mulato João Fernandes Vieira, que exagerava até as mínimas coisas. Por meio dele soube-se em Portugal da punível negligência dos Senhores do Alto Conselho, que deixavam ir-se arruinando os baluartes e passagens das fortalezas desguarnecidas de soldados, admitiam os portugueses nos cargos e ofícios de judicatura no campo, povoado só por eles, não falavam mais de inquirir se tinham armas, distribuíam em cédulas os bens da Companhia, viviam como se estivessem em perfeita segurança, sem outra providência que a de mandar seus es-birros ir procurá-los e pedir-lhes dinheiro; encantavam-se facilmente, assim como todos os outros magistrados, com os donativos e presentes recebidos.