que nada tinham recebido; que sabia escrever, que tivesse dado recibo, o guarda-livros estava longe e não havia mais remédio. Era tal a situação que alguns desses jovens, depois de haverem escapado de tantos perigos e consumido seus mais belos anos neste serviço, nada lhes restando, devido à fraude desses falsários, se enforcaram de desespero. Outros, mais constantes, acompanhados de inconsoláveis estropiados e manetas que não podiam satisfazer-se com as somas prometidas pelos artigos da Companhia para a perda de seus membros, internaram-se nas matas com os vagabundos e velhacos e saqueavam de surpresa os engenhos de açúcar e casas campestres, distanciadas, em geral, de uma ou duas léguas umas das outras, matavam os viajantes e roubavam-nos. Seriam precisos regimentos para cercá-los; mas estando os soldados ocupados nas fronteiras, os comerciantes e viajantes viram-se obrigados a servir-se dos soldados das guarnições como escolta, aos quais alimentavam e pagavam diárias. É certo que para remediar tal estado de coisas eram exemplarmente supliciados todos os que caíam nas mãos da justiça; os outros, porém, não cessavam de saquear.
Avareza vergonhosa de João Maurício de NassauTambém foi isto que deu oportunidade aos portugueses de virem pedir, instante-mente, permissão aos senhores do Conselho para o porte de armas, a fim de se defenderem das incursões e roubalheiras desses salteadores que viriam degolá-los. Os senhores, porém, receando que tal licença excitasse os portugueses à sedição e a tramar e planejar alguma desordem, inicialmente levantaram algumas dificuldades a esse pedido; mas, finalmente, considerando que não havia qualquer aparência disso nem vantagem em expô-los à carnificina dos ladrões e privá-los dos meios de resistir-lhes, permitiram-lhes ter fuzis e mosquetes, sob a condição de serem da marca da Companhia e de trazê-los para o armazém logo que isso fosse ordenado, assim como receber em casa um ou dois soldados, expressamente para fiscalizar o seu procedimento. Depois desta permissão, foram, de início, tão estritamente observados que, à menor suspeita de agitação ou de terem qualquer comunicação com os outros portugueses do partido contrário, o Conde João Maurício de Nassau mandava prender os chefes e principais, que não se livravam de suas mãos antes de untá-las.O mesmo se dava em relação a outros assuntos, com o que não se mostrava a Companhia das Índias muito satisfeita, pois, dizia, ficava ele com o melhor bocado para si. Entretanto, com o decorrer do tempo, souberam os portugueses tão bem agradar com os seus presentes e afagos os grandes e os pequenos e mostraram-se tão liberais e gratos pelas armas emprestadas, que davam pelas mesmas o triplo do justo preço; assim, o desejo de lu-cro que todos possuem levou os comissários e muitos particulares a vender-lhes. Os portu-gueses, ansiosos de prover-se delas, compravam sempre a dinheiro e davam, comumente, trezentas a quatrocentas libras por peça; conta-se, até, que um senhor de engenho com-prou duas, a setecentas libras cada uma. Mas Deus, que desde então reconheceu a extrema avareza dos holandeses, cegou-os de tal modo pela ganância do lucro que permitiu, aos portugueses munirem-se de armas de fogo dessa espécie, das quais tiraram inestimável pro-veito: estas mesmas armas que tinham sido os instrumentos de sua avareza foram os de suas ruínas e de suas perdas, como verá o leitor pela seqüência deste discurso.
Só se dizia missa no campo, e não nas praças e cidades pelos pelos capuchinhos e franciscanos, não pelos jesuítas.Quanto ao estado da religião, havia liberdade de consciência, mas a missa só era rezada no campo (e não nas cidades e lugares fortes) pelos capuchinhos e franciscanos (não pelos jesuítas, que não eram tolerados ali). Estes eram enviados pelo Bispo da Baía de Todos os Santos e obrigados, antes de começar a oficiar, a apresentar-se aos senhores do Conselho do Recife, pedir-lhes seu consentimento, prestar juramento de fidelidade, de que ali se introduziam apenas para instruir o povo no te-mor de Deus, de honrar os magistrados, viver bem com o seu próximo, e não se introme- ter nos negócios do Estado; davam caução e eram responsáveis pelas suas ações. Os holandeses pregavam por toda parte em flamengo, francês, português, inglês; dirigiam-se aos brasilianos pelos ministros que, desde a juventude, tinham aprendido a sua língua e estudado nas Universidades de Leide, Utrecht e Groninga, os quais residiam entre eles como professores, ensinando a ler e a escrever em cada aldeia. Não tinha sido possível, ainda, persuadir os tapuias, porque o diabo os ameaçava e maltratava logo que pensavam acercar- Irreligião deste país I -se e porque não viam reluzir santidade entre os cristãos, censura- vam-lhes o serem mais maldosos do que eles, capazes de dizer maravilhas e de não fazer nada apropriado de suas belas lições.
Irreligião deste país. Exemplo de uma prodigiosa avareza.Com efeito, a piedade jamais foi tão fria num país onde o ar tem tanto calor: estavam em voga todos os vícios, os templos de uma e de outra religião eram pouco ou nada freqüentados, a pouca preocupação de enviar aí seus escravos e ensiná-los a rezar a Deus era causa de que vivessem como animais, sem outro cuidado que fazê-los trabalhar, tendo eles apenas o domingo para repousar. Os judeus preocupavam-se muito mais com a instrução dos seus em suas crenças, mas todos, indiferentemente, levavam vida lasciva e escandalosa; judeus, cristãos, portugueses, holandeses, ingleses, franceses, alemães, negros, brasilianos, tapuias, mulatos, mamelucos e crioulos coabitavam promiscuamente, sem falar dos incestos e pecados contra a natureza, pelos quais diversos portugueses convictos foram condenados à morte e executados. Mas eis aqui um efeito prodigioso de avareza que, à primeira vista, parecerá inverídico: estes judeus e cristãos vendiam não somente os filhos das mulheres escravas, permitindo aos negros virem procriar em suas casas, como ainda aqueles que tinham sido gerados de seu próprio sangue com as negras, às quais eles seduziam e tinham como concubinas; vendiam e compravam escravos como se faz aqui com os novilhos e carneiros, e a única providência tomada pelos magistrados era ordenar a liberdade da escrava seduzida pelo seu senhor.
Remédio contra as lascívias que se prticavam nas Índias. Território conquistado pelos holandeses.Apesar dessa geral corrupção de costumes, presságio de alguma estranha calamidade, não deixaram as armas dos holandeses de florescer e de conseguir contínuas vitórias sobre o Rei de Espanha. Tornaram-se assim pacíficos possuidores, como dissemos, de perto de trezentas léguas de território, nas quais estão compreendidas as capitanias e praças do Ceará, Santo André, Rio Grande, Cunhaú, Paraíba, Cidade Frederica, Goiana, Olinda, o Recife de Pernambuco, Cabo Santo Agostinho, Serinhaém, Porto Calvo, Rio São Francisco, as ilhas Fernando de Noronha e de Itamaracá, etc. Tinham já a Baía de Todos os Santos, que haviam tomado uma vez, guardado apenas um ano, e de novo perdido. Os soldados queriam reparar esta brecha na sua reputação e voltar a implantar-se ali. Eram em número de dez ou doze mil homens efetivos, todos bravos guerreiros, tinham ao seu lado os brasilianos e tapuias, praças fortificadas e munidas de boas guamições. Uma vez que tudo cedia ao seu valor, prometiam submeter-lhe ainda, uma cidade tão considerável, rica e importante. Aliás, não era sem razão que desejavam empreender uma tão bela empresa e esforçar-se por vencer, pois este era o ponto mais alto que poderia atingir sua ambição, visto que a posse desta cidade os tornaria senhores absolutos de um país tão grande, tão belo e tão fértil como o Brasil.Estavam os preparativos da guerra tão bem organizados para este objetivo quanto a coragem dos soldados disposta a vencer; e considerando-se o estado em que então se encontrava essa praça, os holandeses facilmente a teriam tomado. A revolta da coroa de Portugal contra a obediência à de Castela, em 1641, porém, foi o golpe fatal que estorvou os seus triunfos e estancou os troféus adquiridos pelo mérito de tantos generosos soldados para a Companhia das Índias, como mostraremos adiante.