Escorço biográfico por Affonso de E. Taunay

Escrito por Taunay, Alfonso e publicado por Museu Paulista. Imprensa Oficial do Estado

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em seu itinerário, atravessou (o Oceano) e chegou ao Brasil. Logo, decorrido um mês de sua chegada assistiu ao cerco e investida da maior cidade dos portugueses, ali, São Salvador sofrendo então duas graves enfermidades."Ano ergo 1638 post Christum natum, cum ipsis Calendi Januarii Europa solvit, et duorum mensium spatio, ut ipse ad singulas dies annotavit, in suo itinerário, trajecit ac pervenit in Brasiliam, statimque vix elapso mense, ex quo appuderat, interest, obsi-dioni ac oppugnationi maximae ibidem Lusitanorum Urbis S. Salvador dictae ubi mox duobus maximis periculis defunctus est". Encontrou MARCGRAVE O Príncipe de NASSAU ocupado com os últimos preparativos de sua expedição contra a Baía.A 8 de abril partia de Recife a sua grande esquadra e a 20 encetava a expugnação da praça, ope- ; ração em que seria tão mal sucedido, pois, repelidos com o maior vigor os seus assaltos ver-se-ia obrigado a levantar o cerco e a voltar com grandes perdas a Pernambuco.Desagradável foi o primeiro contato de MARCGRAVE com o clima do Brasil. Assim em duas ocasiões escapou de morrer durante o assédio da Baía como refere o irmão e biógrafo. Com a retirada da expedição batava voltou ao Recife.Falando das primeiras passadas de MARCGRAVE no Brasil, conta-nos JULlANO MOREIRA interessantíssima novidade. É que desembarcado havia apenas dois meses se atrevia a escrever cartas em português ao Príncipe, prova do afan enorme que o dominava, no sentido de poder tirar o máximo proveito da estada no Brasil, pela dominação da língua dos povoa-dores da terra. Em maio, do mesmo ano de 1638 mandava a NASSAU O seguinte, em mau português, mas em todo acaso já em português: Sinhor. Aqui tim V. M. alguás regras trazadas de minha mão as quaes estão para testimunhar nossa arrivada e para fazer sabir que eu estão continuadamente criado de V. M. Marc-graf di Liebstad Alemão. Esc., em arryal dianti da villa S. Salvador na Bahia de todos os Santos em Brasil 5,15 de Mayo MDCXXXIIX.Esta carta quem a comunicou a JULIANO MOREIRA foi o Prof. BAREND JOSÉ STOKVIS O célebre médico holandês (1834-1902) lente de clínica e patologia geral da Faculdade de Amsterdã autor de famosas pesquisas sobre as moléstias da nutrição, o diabetes e a gota, sobretudo e a desigualdade da influencia do clima tropical sobre as raças humanas. É considerado o fundador da patologia comparada das raças.Muito afeiçoado aos estudos históricos igualmente, fundou com PEYPERS e outros o Janus, arquivo internacional de história de medicina e ele próprio escreveu muito interessante e documentada obra intitulada La médecine coloniale et les médecins hól-landais au XVIIème Siècle (1883). Foi então que lhe coube estudar percucientemente a biografia de MARCGRAVE e a de Piso. Infelizmente não logramos ter em mãos esta obra tão gabada.Na carta divulgada por STOKVIS vemos uma assinatura diversa do Marcgrave que GUDGER afirma ter sido a única usada pelo sábio de Liebstadt. Não sabemos aliás se MOREIRA se valeu do livro de seu informador.Deixa GUDGER, a princípio, entrever aos seus leitores que MARCGRAVE partiu da Holanda na frota de JOÃO MAURÍCIO DE NASSAU "homem notável, não apenas guerreiro e estadista como também amante e cultor das ciências de que era insigne investigador".Na Idade-Média, para o estudo da natureza desdenhado nos países mais cultos da Europa, e ainda em meiados do século XVI, a história natural subordinava-se aos preceitos da filosofia aristotélica, e na parte descritiva, em nada se avantajara às compilações de PLÍNIO, escreve ALFREDO DE CARVALHO."Em mãos de grosseiros plagiários dos disertos escritores greco-latinos não manifestara progresso algum, a não ser que se avolumasse com a afluência negativa de concepções fantasiosas e de fábulas in-verossímeis-monstruosos dragões ignívomos, esquálidos basiliscos de olhar mortífero, salamandras mos-queadas revolvendo em brazeiros vivos o corpo in-combustível, alados hipogrifos de garras peçonhentas, esguios unicórnios tentadores de virgens e pérfidas sereias homicidas - além do farto contigente de hediondas criaturas antropomórficas nascidas no extravagante engenho de um retórico sírio do século II e miudamente descritas em um livro cujo capítulo já era uma mentira".As grandes navegações e os assombrosos descobrimentos da Renascença, revelando as regiões extraordinárias do Oriente e da América e trocando a velha concepção geocêntrica pela nova heliocêntrica, vieram alterar profundamente o próprio alicerce de quase todas as noções adquiridas e modificar a posição do homem no universo.Foram surgindo GIORDANO BRUNO, CAMPANELLA e GALILEU, na Itália; WEIGEL e BOEHMER, na Alemanha; BACON e HOBBES, na Inglaterra; DESCARTES e MALEBRANCHE, na França e SPINOZA, na Holanda, e a grande paixão da Renascença - secreta, herética, proibida, e por isso tanto mais violenta - a paixão da Natureza, começou a abrolhar livremente e a manifestar-se por toda a parte. Naqueles dias remotos toda a Europa ansiava por saber das maravilhas dos novos mundos, e ainda mais veemente era a curiosidade de conhecer as estranhas criaturas que os ousados exploradores logravam colher e trazer consigo.Ainda não existiam museus públicos; mas" os príncipes reinantes e os burgueses opulentos emula-vam em adquirir novidades sob a forma de animais e plantas exóticas.COLOMBO, incumbido por ISABEL, a Católica, de colecionar pássaros, levou à Espanha peles de vários animais. Suspensa da parede da antiga igreja de Siena, ainda hoje pode ser vista uma oferenda votiva ali colocada, há mais de quatro séculos, pelo descobridor da América, então no fastígio da glória consistia no elmo e na armadura que vestia quando pela primeira vez pisou o solo do Novo-Mundo, e do espo-rão de um espadarte morto em águas americanas.De Pôrto-Seguro enviou CABRAL a D. MANUEL grandes araras de plumagem azul e purpurina, e a admiração provocada em Lisboa por estas aves foi tal que o novo descobrimento chegou a ser chamado Terra dos Papagaios, nome empregado, até na sua correspondência oficial, por LORENZO CRETÍCO, então agente da senhoria de Veneza junto ao monarca afortunado.Contrabandistas de Honfleur, do Havre e de Dieppe levavam para a França verdadeiros carregamentos de animais brasileiros, que figuravam em número avultado nas festas pomposas celebradas, em 1500 para receber HENRIQUE II em Rouen.Colecionador entusiasta, JAYME I, da Inglaterra, em 1609 mandava vir da Virgínia exemplares dos famosos esquilos voadores, e, em 1637, CARLOS I enviava JOHN TRADESCANT para que ali colhesse "todas as raridades de flores, plantas e conchas".SHAKESPEARE na "Tempestade" fixou admira-velmente o espírito da época fazendo TRÍNCULO, náufrago na ilha deserta, exclamar diante de CALIBAN adormecido: "Na Inglaterra, ao passo que negam um sôldo para alívio de um mendigo aleijado, estão prontos a pagar dez por um índio morto".E os viajantes e cosmógrafos, ciosos de satisfazer o interesse dominante, entremeiavam as suas narrativas de notícias sobre a flora e a fauna das novas zonas.Já em 1535 OVIEDO publicava, em Toledo, a sua Historia Natural y General de Ias Índias; THEVET, nas Singularitez de Ia France Antarctique (1558), e LÉRY, no Voyage en Amerique (1578) descreviam pela primeira vez as plantas e os animais do Brasil, e, a mandado de FELIPPE II, HERNANDEZ permanecia, de 1593 a 1600, estudando os do México.Mas, era dos trabalhos de JORGE MARCGRAVE no século imediato, que cumpria verdadeiramente datar, o início da moderna ciência botânica e zoológica".E o teatro da atuação deste precursor foi a América, ou antes, o Brasil.