Escorço biográfico por Affonso de E. Taunay

Escrito por Taunay, Alfonso e publicado por Museu Paulista. Imprensa Oficial do Estado

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JORGE MARCGRAVE, DE LIEBSTAD (1610-1644)ESCORÇO BIOGRÁFICOPOR AFFONSO DE E. TAUNAYCAPÍTULO I

Haverá brevemente três séculos que, ainda na flor dos anos, da vida presente se despediu o primeiro observador, de formação realmente científica, peregrino das terras americanas, e primeiro astrônomo do Novo Mundo, divulgador das novidades do firmamento do hemisfério austral e primeiro divulgador também da opulência da flôra e da fauna brasileiras. Era ele JORGE MARCGRAVE, o autor famoso da Historia Naturalis Brasiliae e de grandes trechos da Historia rerum naturalium Brasiliae. Nascido a 10 de setembro de 1610, em Liebstadt, faleceu na África Ocidental em dia ignorado de julho, ou agosto de 1644. Aos 34 anos incompletos portanto. Cerebração privilegiada esta que cessou de trabalhar quando começara a produzir as mais extraordinárias demonstrações de sua formidável pujança e ia apresentar aos círculos científicos os frutos de seu labor, imenso e de seu talento.Poder-se-lhe-ia aplicar, certamente, o conceito grandioso com que o ilustre D'ARSONVAL comentou o desaparecimento de outro e notabilíssimo cientista, também autor de obras do maior relevo sobre o nosso país tombado aos trinta anos, exatos, de idade: Luiz COUTY: "Tem-se a impressão de que a Natureza, ciosa de seus segredos, apressou-se em aniquilar uma inteligência cujo trabalho redundava no desvendamento de seus mistérios".Assim se deu com JORGE MARCGRAVE.Não é ele apenas o primeiro naturalista que ao Ocidente revelou a opulência do campo imenso dos reinos naturais americanos, apresentando o fruto de suas pesquisas dentro dos moldes da ciência real, isenta dos devaneios e das abusões de seus antecessores.É também o primeiro explorador não só do firmamento do Novo Mundo como do hemisfério austral, o primeiro cientista que em terra americana montou um observatório astronômico. Aí já em 1639 estudava o movimento dos astros, sua aparição e ocultação paralaxes e distâncias, e em 1640 tomava observações do primeiro eclipse solar apreciado nas Américas. E depois o mesmo faria em relação a diversos eclipses lunares.Todo este trabalho preliminar a que se seguiria não sabemos que maravilhosa sucessão de conquistas para a ciência foi o de um homem baixado ao túmulo antes dos trinta e cinco anos de existência."Assim se foi para a sepultura, aos trinta e quatro anos de idade, no zenite da atividade ereputação, JORGE MARCGRAVE, que se tivesse vivido mais alguns anos para poder coordenar o material de suas coleções e as observações feitas no Brasil teria certamente assentado a reputação de primeiro naturalista de sua era, atingindo possivelmente a categoria dos primi inter pares, de todas as épocas, desde os anos de Aristóteles".Não são exageradas estas palavras expressas pelo DR. EUGENIO WILLIS GUDGER, ilustre naturalista norte-americano, autor do mais completo estudo biográfico de MARCGRAVE que ao nosso conhecimento chegou.Sua monografia George Marcagrave, the first student of american Natural History, publicada pelo The Popular Science Monthly, de setembro de 1912 basta para se avaliar o mérito intelectual, o critério cauteloso, a moderação de opiniões e consciência de pesquisas, do ilustre ictiólogo americano.A esplêndida bibliografia por ele consultada é vasta e excelente. Compreende vinte e nove números das mais variadas procedências alemã, holandesa, inglesa, francesa.Não compendiou a brasileira o que seria sobremodo desejável e representa grave lacuna. Provavelmente porque lhe seria muito difícil encontrar elementos nossos numa época em que as bibliotecas dos Estados Unidos ainda eram muito falhas de livros brasileiros.Teve contudo algum contacto epistolar com ALFREDO DE CARVALHO, como nos contou em carta. Mas isto, após a publicação de sua memória.Consta o trabalho de GUDGER, de 24 páginas, in quarto, e não nos consta que jamais haja sido traduzida para o português senão parcialmente.Dele fez em 1914 muito pequenino resumo, para o tomo nono da Revista do Museu Paulista (pág. 307-315) o dr. RODOLPHO VON IHERING.Corresponde a um quinto do texto americano, quando muito, pois este está impresso em tipo muito menor do que o da Revista e nele não há a mínima nota original nem a menor informação brasileira.A leitura da monografia de GUDGER revela-nos que seu autor procedeu à mais atenta leitura das mais valiosas fontes informativas sobre a vida e a obra do seu biografado.Partindo do essencial MANGET, O compilador da Bibliotheca Scriptorum Medicorum onde se recolheu o insubstituível escrito do anônimo seiscentista sobre a biografia de MARCGRAVE, compulsou o dr.

GUDGER os indispensáveis Theatrum rerum natura-lium Brasiliae do anônimo de 1717 o Versuch eines Commentars über die Pflanzen in den Werken von Marcgrave und Piso über Brasilien (1835) de MARTIUS a Gedenkweerdige Brasiliaense zee enlant Réize de NIEUHOF, a Die Werke von Marcgrave und Piso de LICHTENSTEIN (1814, 1816, 1817, 1826) a Histoire des Sciences Naturelles de CUVIER (1841) a Histoire Naturelle des Poissons de CUVIER e VAILENCIENNES (1828) a Vorrede, aus Theatrum rerum naturalium Brasiliae de CHRISTUS MENTZEL (1660) a Nachricht von den Originalzeichnungen von Marcgraf bresilischer de J. G. SCHNEIDER (1786) a Biblioteca Scriptorum Historiae Naturalis de JORGE RODOLPHO BOEHMER (185) a Astronomia de LALANDE (1771) além dos velhos analistas do Brasil holandês como BARLAEUS no Rerum per octennium (1647) e na Brasiliansche Geschichte (1659) JOÃO DE LAET no Novum orbis (1640) nos próprios livros de MARCGRAVE e nas obras de Piso: De medicina Brasiliensi (1648) e De Indiae Utriusque Re Natu-rali et Medicae (1658).Valeu-se também dos relativamente recentes biógrafos de MAURÍCIO DE NASSAU e historiadores da conquista holandesa no Brasil como DE CRANE (J. G.) Oratio de Joanne Mauritio Nassaviae Príncipe cognomine Americano (1806) LUDWIG DRIESEN Leben des Fursten Johan Moritz von Nassau Siegen obra de grande valor (1849) Les hollandais an Brésil de P. M. NETSCHER (1853) Joan Maurits van Nassau Siegen, gezeg de Amerikaan, de NlCOLAU G. VAN KAMPEN (1840).Neste particular pensamos que o distinto autor americano poderia ter estendido e bastante o raio de ação de suas pesquisas. Assim, não conta que haja percorrido os livros de MONTANUS, COMME-LYNCK e tantos mais clássicos de nossa bibliografia batavo-brasileira ao menos para obter como que certidões negativas das pesquisas intentadas.Na obra dos ictiólogos antigos e modernos encontrou GUDGER bastantes elementos. É ele próprio ictiólogo, daí o rumo natural de suas investigações.Assim além da obra de BLOCH (Marcos Elieser) a Ichtyologie de 1785 e em CUVIER e VALENCIEN-NES encontrou dados novos nos trabalhos de especialistas modernos do renome mundial de GUNTHER na An introduction to the study of Fishes (1880) JORDAN e STARR A guide to the study of fisches (1905).Entre os trabalhos enciclopédicos consultou a Nouvelle Biographie Générale de HOEFER (1860) e a Allgemeine Deutsche Biographie publicada em Leipzig e em 1884, a Introduction to the Litterature of Europe in the Fifteenth, Sixteenth and Sevente-venth Centuries de HENRY HALLAM (1886).Como vemos está o nosso autor senhor de vasta e preciosa bibliografia mas falta-lhe, e por completo, o exame da nossa, brasileira e portuguesa onde se não havia ainda elementos de primeira ordem já existiam dados apreciáveis e comentários modernos ótimos assinados por nome da valia do de ALFREDO DE CARVALHO.É singular que GUDGER não haja recorrido às fontes lusas quando o teatro da obra e da glória de MARCGRAVE foi exatamente o Brasil.Se refizesse o seu estudo dois anos mais tarde encontraria elementos de primeira ordem na magnífica monografia de JULIANO MOREIRA a que, doutamente como sempre comentou RODOLPHO GARCIA na sua excelente História das explorações científicas no Brasil. Sobre MARCGRAVE, escreveu ALFREDO DE CARVALHO três estudos: o 1.° publicado na Rev. do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, n. 72, pp. 212, 222, sob o título - "Um Naturalista do Século XVII, George Markgraf, 1610-1644"; o 2.°, epigrafado: "George Marcgrave, o primeiro investigador da história natural americana", tradução Inédita do artigo pelo dr. E. W. GUDGER, no Popular Science Monthly, de setembro de 1912; e o 3.°, intitulado "As obras de Markgraf e de Piso sobre aHistória Natural do Brasil, à vista dos manuscritos originais novamente achados por M. H. K. LICHTENSTEIN". (tradução do texto deste autor célebre "Die Werke von Marcgrave und Piso über die Naturgeschichte Brasiliens, erlautert aus den wie-deraufgefunden Originalzeichnungen.Ao ensaio de GUDGER traduziu o erudito pernambucano, parcial e não integralmente como pensa o seu comentador EDUARDO TAVARES DE MELLO. Dele deixou metade apenas, fragmento impresso na Biblioteca Exótica Brasileira. O resto vertemo-lo nós, agora, aproveitando-o nesta monografia.Estranha EDUARDO TAVARES, e com toda a razão, que nem o catálogo da Exposição de História do Brasil, de 1881, nem o da biblioteca de J. C. RODRIGUES, nem ainda os de MAGGS BROS, OS afamados antiquários londrinos tragam referências aos trabalhos do nosso protonaturalista.Apenas se referem às edições em que a sua contribuição aparece reunida aos textos de Piso, como se MARCGRAVE houvesse sido um satélite do primeiro médico de JOÃO MAURÍCIO DE NASSAU quando valia incomparavelmente mais do que ele.Esta ausência se explica, ao nosso ver, pelo fato de que os confecionadores de tal bibliografia não tiveram em mãos volume algum da Historia Naturalis Brasiliae a obra póstuma, do sábio seis-centista, editada graças à solicitude do Príncipe de NASSAU e o carinho de JOÃO DE LAET, livro autônomo hoje sumamente raro que se vende por dois a três contos de réis. Apresenta-se em casa dos antiquários incomparavelmente mais escasso do que o volume vulgarmente chamado de Piso e MARCGRAVE.A biografia de GUDGER, rica de informes os mais variados e comentários os mais abalisados, supera notavelmente a de ALFREDO DE CARVALHO, mas ressente-se e muitíssimo da inciência das coisas do Brasil, por parte de seu autor. E isto a prejudica consideravelmente, frisemo-lo de novo.Em 1917, surgiu sobre MARCGRAVE e Piso o ensaio devido a JULIANO MOREIRA. Trouxe assaz elevada contribuição inédita havida dos arquivos alemães e holandeses.É o estudo do ilustre psiquiatra brasileiro um dos mais belos da nossa bibliografia. No dicionário editado pelo Instituto Histórico Brasileiro em 1922 e mais conhecido sob o título de Dicionário do Centenário na magnífica História das explorações científicas no Brasil, (sem favor algum um dos mais belos capítulos da grande obra, infelizmente por terminar e devida à iniciativa de MAX FLEIUSS) , conjugou RODOPHO GARCIA, magister magistrorum, os informes de ALFREDO DE CARVALHO e os de JULIANO MOREIRA. Deu-nos apanhado da maior relevância.Ao estudo magistral de MOREIRA trasladámos das páginas da Revista do Instituto Histórico Brasileiro às do tomo XIV da Revista do Museu Paulista. Sabemos agora, de RUY RIBEIRO COUTO, que na Holanda existe copioso material de origem marc-graviana totalmente inédito. Esforçou-se o nosso joven e eminente colega da Academia Brasileira por aduzir estas novas fontes mandando copiar e fotografar este documentário farto.Assim se acha em condições de desvendar novos e importantes fácies da personalidade do grande naturalista, do nosso seiscentismo.Como quase todos os astrônomos de seu tempo foi MARCGRAVE também astrólogo. Descobriu o nosso belo poeta e prosador, que é ao mesmo tempo um dos mais destacados membros de nossa representação diplomática, numerosos horóscopos da autoria de MARCGRAVE.Alguns deles referentes a personalidades que tiveram destaque na conquista batava do Nordeste.Com ansiedade esperamos que RIBEIRO COUTO traga logo a público algum estudo sobre este assunto tão interessante quanto característico para o melhor esclarecimento da vida e da obra, até hoje imperfeitamente estudada do primeiro naturalista e do primeiro astrônomo das Américas, do primeiro-JORGE MARCGRAVE

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